.SOMEWHERE.


 Somewhere | Fotografias como pinturas sobre telas. A declinação da melancolia.

Moisés de Lemos Martins
Sociólogo | Escritor | Professor da Universidade do Minho
Director do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) 


Somewhere é um álbum de fotografias sobre objetos, um álbum que nos dá a ver composições de objetos, dispostos ordenadamente numa placa de PVC, pela mão de um pintor. Trata-se de composições conceptuais, com uma figura de mulher, erotizada, de um modo geral, nus os pés, pernas, braços e ombros, uma figura de longos cabelos, cintilantes. Nesta tópica de ligações, encenada por Pintomeira, a figura feminina é revisitada obsessivamente, pelo que vamos encontrá-la, umas vezes como única personagem a ocupar a tela, outras em ligação com mais objetos - a erótica, sabemo-lo desde o Banquete de Platão, é a arte das ligações. Mas é absoluta a ausência de um outro, que possibilite a relação, a eventualidade do encontro e de um caminho para diante. Nesse corpo erotizado, não existe, com efeito, a possibilidade de um caminho de futuro. Não existe nunca, nestas imagens de mulher, a figuração dessa promessa. A figura feminina é um mero objeto de fruição sensual e estética, pronto a ser consumido, e logo para ali deixado ao abandono, ou então, jogado fora, uma vez consumada a sua função de objeto consumível. As legendas de várias fotografias, por exemplo, “go for it”, “no way” e “going nowhere”, não assinalam mais nada: uma vez consumido, o objeto de fruição sensual e estética encerra a sua função narrativa.
A figura feminina não é distinta dos objetos que compõem o quadro fotográfico, oupictórico, tanto faz, seja sofás em exposição numa vitrina, caixotes de lixo, ou malas de viagem, seja embalagens de iogurte, escadotes ou bancos de escritório, estendedores de roupa ou baldes de limpeza. Hibrida-se na tela com estes objetos do quotidiano, mistura-se neles, em poses de puro deleite, por vezes não convencionais, numa ligação erótica, dando a ver a publicidade como uma arte que se alimenta do sex-appeal dos objetos e que o reativa em permanência. As legendas, em inglês, que entram na composição de muitas das fotografias (“absolutely”, “simply”, “feeling blue”, “feeling so grey”, “black n white”, “pinkely”…), não se cingem à funcionalidade instrumental, de elementos de mera composição estética; lembram igualmente anúncios de marcas de bebidas alcoólicas ou cocktails, tão inebriantes quanto as imagens femininas que os acompanham.
Sendo uma composição de objetos, cada fotografia encena uma tópica de ligações. Trata-se, todavia, de ligações sem a tensão do humano, dado que não têm, na tela, o confrontocom um outro. Esvaziados de sentido humano, os objetos, sejam eles figuras femininas, apenas nos falam de abandono, solidão, ausência e clausura (“anywhere”, “nowhere to go”, “let it be”, “never mind”, “who cares”, “give me a breack”…). E também nos falam de uma evanescência de sentido. É o caso, por exemplo, de figuras de mulher, estendidas na horizontal, que pairam em levitação, de olhos bem abertos, mas de olhar vazio, ou então, de olhos fechados, moribundos, encenando um movimento de perda permanente. Ao agarrar os corpos pela cintura, apoderando-se deles, o fundo ambiente da tela, tanto a preto como a branco, ameaça alastrar e fazê-los desaparecer, simbolizando uma permanente hemorragia de sentido. Um extenso manto amarelo cobre, num mesmo movimento, um corpo de mulher e um caixote de lixo. E é esse mesmo caixote de lixo que se constitui em recetáculo para a recolha de todos os objetos ali amontoados, numa sugestão de que são resíduos, desperdícios, tanto as embalagens de iogurte vazias, como o corpo da mulher, que se exibe, com um pé apoiado num pedestal – afinal, um corpo da mulher produzido pela publicidade.
Mas ainda mais sugestiva é a imagem de um corpo de mulher, arrumado a um canto com embalagens vazias de iorgurte, constituindo tudo aquilo um montão de lixo, pronto para ser recolhido no caixote, mesmo ali ao lado. Entretanto, podemos ver nesse amontoado de embalagens vazias, um colorido manto de lixo, a cobrir um não menos cintilante corpo de mulher, os dois se hibridando num mesmo objeto – são detritos, desperdícios da atividade humana. E é a mesma cantiga, e também uma fraca cantiga, tanto a mulher erotizada, que celebrará o eterno feminino, como a mulher que segura numa mão um balde de limpeza.   
No modo de produção da sociedade de consumo, a publicidade reativa em permanência um processo de sedução, que passa pela erotização do corpo da mulher. Embalada como objeto “fragile”, em fita plástica, própria para embalar produtos quebradiços, o corpo da mulher produzido pela publicidade é tão “true blue” como “azul verdadeiro” é a tampa do caixote de lixo em que se apoia.
É este processo que Pintomeira disseca nas suas construções de objetos fotográficos, quais pinturas arrancadas de uma paleta de cores variadas, através de um vigoroso traço de pincel. Ao dar-nos a ver corpos de mulher, meticulosamente maquilhados, de longose sedutores cabelos, impecavelmente penteados, de rosto, braços e pernas, tratadas a fotoshop, para melhor acentuar a eterna juventude de um corpo feminino, Pintomeira apenas realça o traço perfeito das formas da mulher na publicidade, para melhor desconstruir este modo de produção que reduz o humano a resíduos e detritos.
Por essa razão, quando num cais que não é porto de abrigo, nem início de viagem, um corpo de mulher é deixado ali ao abandono (“somewhere”), e procura apoio em malas fechadas, como fechado é o seu destino, que conclusão tirar senão a da legenda “whatever”, que entra na composição desta tópica de objetos? E que não nos engane o corpo de mulher, impecavelmente ataviado, dos sapatos à sombrinha, num cais que não é de embarque – o fundo negro da imagem sugere um horizonte fechado. Não se trata, pois, neste álbum de fotografias de uma vida em suspenso, nem de uma vida à espera, e menos ainda de uma vida prometida; trata-se apenas de uma vida ausente, uma vida sem o sentido do humano.
Estas fotografias não são imagens felizes, tão longe estão da terra da alegria (“so far away”). Nenhuma esperança as redime. É esta profunda melancolia que se lhes cola à pele como a sombra de uma história sem sentido.
Do lado de cá da tela, está o espectador, cúmplice desta história de progressivo esvaimento do sentido e a partilhar esta radical solidão, de objeto que o humano não habita mais.
Tendo frequentado várias correntes estéticas, Pintomeira compõe este álbum de fotografias, no termo de uma longa viagem. Mantém-se fiel ao seu caminho de sempre, que lhe tem permitido exprimir e interrogar as muitas vicissitudes do humano. Mas, nos tempos mais recentes, sobretudo desde Interiores (2008 e 2009) e Outras Faces (2010), tem-se fixado com particular obstinação e radicalidade no território devastado do humano, de onde desertou o espírito e a Cidade ficou ao abandono, sem memória, de olhar perdido, sem rumo e sem horizonte.